segunda-feira, 14 de abril de 2014

Um novo tipo de cristão


[Josemar Bessa]

Há pregadores que adoram frases do tipo: “Todo ponto de vista é a vista de um ponto” – O que eles desejam ensinar com isso? Brian McLaren resume essa mentalidade na introdução ao seu livro A New Type of Christian ("Um Novo Tipo de Cristão"):

Dirijo meu automóvel e ouço a estação de rádio cristã, algo que minha esposa sempre diz que devo parar de fazer ("porque isso só deixa você nervoso", diz ela). Ali, ouço um pregador após outro se mostrando absolutamente seguro de suas repostas, que são até à prova de bombardeio, e das suas interpretações bíblicas infalíveis... E, quanto mais seguro ele parece, tanto menos desejo ser um cristão, porque neste outro lado, distante do microfone, das antenas e do locutor, a vida não é tão simples assim; as respostas não são tão claras assim; e nada é tão seguro assim”.


Deste modo, o pós-modernismo "evangélico" chegou a transformar em virtude sublime toda dúvida, incerteza e hesitação a respeito de quase todos os ensinos das Escrituras. Convicções fortes, afirmadas com clareza, são invariavelmente rotuladas como "arrogância" por aqueles que favorecem o diálogo pós-modernista.

Cristo sempre nos guia na Verdade, e Ele nos faz viver o evangelho e proclamá-lo fielmente, não como um nariz de cera que pode ser moldado por cada um segundo suas conveniências, e é assim que Ele nos guardará de“tropeçar, e nos apresentará diante da Sua glória sem mácula e com grande alegria” (Judas 24). Ambivalência é como uma corda que, se não verificada, torna-se uma algema que prende o homem à heresia. Ambivalência é o câncer desta geração!

O relativismo é uma revolta contra a realidade objetiva de Deus. A mera existência de Deus cria a possibilidade da verdade absoluta. Deus é a norma suprema e final para todas as alegações de verdade. Quem ele é, o que ele quer, o que ele diz, é o padrão externo e objetivo para se medir todas as coisas. Se o mundo acha isso relevante ou atrasado, isso não faz a menor diferença. E sua revelação é clara, mas jogamos fumaça sobre ela quando queremos agradar ao mundo mostrando que tudo não passa de pontos de vistas diferentes. Que a verdade é subjetiva. Quando o relativismo diz que não existe um padrão de verdade e falsidade que é válida para todos, ele fala como um ateu. Ele comete traição contra Deus.

O relativismo é uma rebelião generalizada contra o próprio conceito de direito divino. Portanto, é a rebelião mais profunda contra Deus. É uma traição que é pior do que a revolta total, porque é desonesto. Continua pregando um "evangelho" que na realidade não é verdade absoluta externa a nós. Era melhor dizer que não crê ser ele a verdade e pronto. É realmente pior de que uma revolta total. É realmente desonesto - pois devia dizer na face de Deus "A tua palavra é falsa". Dizer: "A tua palavra é ambígua..." - dizer: "Não há tal coisa como uma palavra universalmente objetiva revelado por Deus" – Mas não usa dessa clareza honesta, e então deixa o que chama de "verdade" como algo aberto para cada homem moldar as coisas segundo seu coração enganoso. Isso é traição.

Ah! A loucura das mentes descuidadas abertas para tudo e caindo por nada, já dizia alguém. Todas as pessoas que são superficialmente “ortodoxas”, que dizem que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, transformam a verdade das Escrituras em mentira.

Essa abordagem tem sido mencionada, por alguns, como "uma hermenêutica da humildade" — como se fosse inerentemente orgulhoso demais para um pregador o imaginar que ele sabe aquilo que Deus disse a respeito de alguma coisa. É claro que essa negação de toda a certeza não tem qualquer indício de verdadeira humildade. De fato é arrogância, arrogância contra Deus. De fato, isto é realmente uma forma arrogante de incredulidade, arraigada na recusa imprudente de reconhecer que Deus foi suficientemente claro na revelação que fez de Si mesmo às suas criaturas.

Essa atitude é uma forma blasfema de arrogância e, quando ela governa até a maneira como alguém maneja a Palavra de Deus, se torna outra expressão de rebeldia maligna contra a autoridade de Cristo. Era melhor dizer abertamente: eu amo a mente do mundo (minha própria mente), não a de Deus.

Quando a verdade objetiva desaparece na névoa do relativismo, não somos mais um humilde servo para a proclamação preciosa verdade. Um homem assim joga fora o jugo da servidão e assume um poder próprio. Ele não se submete à realidade objetiva externa, ele cria a sua própria "realidade". Ele não serve mais para mostrar a verdade. Ele passa ser a fonte de autoridade que define o que é a verdade. E todos alegremente aplaudem, pois cada um pode ter a “sua” própria “verdade”, já que ““todo ponto de vista é a vista de um ponto”

Devemos tomar o jugo da Verdade revelada mesmo que a cultura à nossa volta a ache loucura e escândalo, mesmo que ela não se adapte para se tornar “relevante” para o mundo. Todos os amantes da verdade são humildes, mas apesar de tentar vender isso desonestamente, o relativismo não é uma postura humilde, mas um manto de orgulho, altivez contra Deus, uma heresia destruidora!




terça-feira, 8 de abril de 2014

Disciplina na vida cristã: um conceito a ser resgatado




[por Alderi Souza de Matos]

A mentalidade hedonista e utilitária do tempo presente não vê com bons olhos a ideia de disciplina. No entanto, trata-se de uma atitude e uma prática fundamental para a vida cristã. Na Bíblia, encontramos dois tipos de disciplina – a de outrem e a de si mesmo. Na primeira acepção, trata-se das medidas impostas pelos pais aos filhos ou pela igreja aos seus fiéis no sentido de corrigir comportamentos impróprios. No segundo sentido, o que se tem em mente é a autodisciplina, o autocontrole, como parte de uma vida cristã séria e comprometida.

Em grego, o termo relacionado com esse segundo aspecto da disciplina é o verbo “askeo”, no infinitivo “askein”, que significa “exercitar-se”, “esforçar-se”. As palavras cognatas são os substantivos “asketes” (aquele que se exercita, atleta) e “askesis” (exercício, esforço). Essa é a origem dos termos ascese, asceta e ascetismo, que têm a sua própria história. Curiosamente, dos vocábulos gregos acima, só o verbo aparece no Novo Testamento, e mesmo assim uma única vez, em Atos 24.16, onde o apóstolo Paulo diz: “Por isso, também me esforço por ter sempre consciência pura diante de Deus e dos homens”. 

Todavia, se o termo é raro, a ideia correspondente é comum nas páginas bíblicas. Uma passagem clássica é aquela em que Paulo descreve sua vida cristã utilizando diversas palavras da vida esportiva do mundo greco-romano: “Todo atleta em tudo se domina, aqueles, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a incorruptível. Assim corro também eu, não sem meta; assim luto, não como desferindo golpes no ar. Mas esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1Co 9.25-27). Em uma passagem paralela, ele recomenda a Timóteo que se exercite pessoalmente na piedade (1Tm 4.7b). Os verbos utilizados são outros (“agonizomai”, “gymnazo”), mas o conceito é o mesmo. O cristão deve ser um atleta de Cristo. A vida cristã exige esforço, autodisciplina.

No terceiro século, surgiu uma prática que não fazia parte do cristianismo original, a ascese ou ascetismo, no sentido de uma autodisciplina rigorosa. Essa conduta foi entendida principalmente em termos de abstinência de prazeres físicos, em especial a sexualidade (castidade) e a posse de bens (pobreza). Se é verdade que Jesus viveu dessa maneira, em nenhum lugar ele estabeleceu uma lei nesse sentido para os seus seguidores. O Novo Testamento vê com naturalidade o casamento dos ministros de Deus (Mt 8.14; 1Co 9.5). Paulo questiona que o tratamento severo do corpo seja benéfico para a vida espiritual (Cl 2.23). Além disso, quando o Novo Testamento prescreve elevados padrões de conduta moral, fica claro que isso é para todos os cristãos, e não para um grupo seleto (Rm 8.13; 13.13s; 1Ts 4.3-7).

De qualquer modo, as palavras de Jesus ao jovem rico impressionaram fortemente as primeiras gerações de cristãos: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” (Mt 19.21). A expressão inicial, que aparece somente em Mateus, passou a ser interpretada no sentido de que havia dois tipos de cristãos – os que se contentavam com uma vida medíocre e os que aspiravam à perfeição. Desse entendimento resultou o monasticismo, a chamada vida consagrada. Essa instituição deu grande valor à autodisciplina: todo monge fazia o tríplice voto de pobreza, castidade e obediência e se submetia a uma regra de conduta. A vida monástica era rigorosamente estruturada em torno de três atividades: devoção, trabalho e estudo. Havia sete períodos fixos de oração individual e coletiva: matinas, prima (laudes), terça, sexta, noa, vésperas e completas.

A Reforma Protestante, ao relativizar a distinção entre clero e laicato, ao questionar a validade do celibato e ao valorizar a vida normal em família, descartou por completo o monasticismo e a ascese associada ao mesmo. No entanto, como afirma o ditado, jogou fora o bebê junto com a água do banho, pois perdeu esse valioso elemento de uma vida regrada e disciplinada. O temor da rigidez e a busca de total espontaneidade fizeram com que muitos protestantes se tornassem relapsos na sua vida devocional. É verdade que houve movimentos que valorizaram a disciplina espiritual, tais como os pietistas, os morávios e, em especial, os puritanos. Mas hoje, a maior parte dos evangélicos, seja individualmente, seja em família, não cultiva hábitos regulares de oração, meditação e estudo bíblico.

Vivendo numa era de enorme ativismo e dispersão de interesses, os crentes precisam voltar a aprender o valor e o prazer da genuína espiritualidade bíblica. Um autor que fez valiosa reflexão sobre o tema é o quacre Richard J. Foster, cujo livro “Celebração da Disciplina” foi publicado pela primeira vez em português há exatos trinta anos (1983). Nesse clássico, ele aborda doze disciplinas espirituais, divididas em três categorias: interiores (meditação, oração, jejum, estudo), exteriores (simplicidade, solitude, submissão, serviço) e associadas (confissão, adoração, orientação, celebração). Mesmo que não concordemos com todas as ideias de Foster, seu chamado a uma vida de maior profundidade devocional é deveras salutar.

A Escritura e a história demonstram que os homens e mulheres cristãos que maiores contribuições deram à igreja, ao reino de Deus e ao mundo foram pessoas de vida disciplinada, que souberam colocar em primeiro lugar aquilo que é mais importante. Se a igreja contemporânea quiser recuperar a vitalidade de outros tempos, precisa ensinar aos seus fiéis a importância de organização, intencionalidade e alvos concretos não somente nos estudos ou na vida profissional, mas no cultivo da vida interior, na comunhão com Deus e no serviço ao próximo. Como ensina o apóstolo dos gentios (Fp 2.12), todo cristão deve “desenvolver a sua salvação”, e fazer isso com temor e tremor.

publicado na Revista Ultimato, ed. 345, nov-dez 2013.